TEXTOS


A criação de mundos
— Charlene Cabral

Como sobreviver ao mundo
— Fernanda Lopes

Questões do contemporâneo
— Alberto Saraiva

Prefácio - orun
— Raquel Valadares

Firmamentos: uma conversa
— Mari Fraga e Paula Scamparini

Paula Scamparini: em contínuo ponto cego e recomeço
— Clarissa Diniz

barco sobre lona 
— Fernanda Lopes

Restauros, retornos e recomeços
— Maria de Fátima Lambert

oca-oxalá: made in Portugal
— Lourenço Egreja, Clarisse Meirelles

orun
— Heloísa Meireles Gesteira, Paula Scamparini

série palavras
— Fernanda Lopes

sobre carapuças e luz na obra de Paula Scamparini
— Sônia Salcedo del Castillo

as 23 noites
— Sônia Salcedo del Castillo



Firmamentos:
uma conversa

Mari Fraga, Paula Scamparini


︎ projeto


firmamento s.m.
1. ato de firmar; sustentação
2. o que serve de sustentação, de fundamento; alicerce, base
3. espaço celeste visível, no qual se localizam os astros; abóboda celeste, céu, páramo
Dicionário Houaiss1


1 HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 1348

2 BÍBLIA. A.T. Gênesis [1:6]. Português. Disponível no site do Vaticano: http://www.vatican.va/archive/bible/genesis/documents/
bible_genesis_po.html

3 BENNER, Jeff A. Biblical Word of The Month - Firmament. In Biblical Hebrew E-Magazine. Issue 37, 2007. Disponível em: http://www.ancient-hebrew.org/emagazine/037.html

4 KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A Queda do Céu. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 195-196

5 KIEFER, Alsem. Pintar como Feito Heróico. Alemanha, 1989. In ART. p. 114 Entrevista.

6 Trata-se de uma expressão que aparece repetidas vezes no livro Grande Sertão Veredas, de João Guimarães Rosa. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Nova Aguilar. 1994.




Na tradição judaico-cristã, a composição de nosso mundo consistia numa superfície plana e circular, cercada de águas por baixo, pelos lados e por cima, protegida por uma abóbada celeste, que criava o espaço para a atmosfera.2 Segundo essa mitologia, o ato divino da criação consistiu em “separar as águas” que permeavam essa camada estrutural, cuja etimologia em hebraico — raqa עקר — faz referência ao processo de martelar uma porção de metal até formar uma chapa.3 A essa espécie de domo metálico, que suportaria todo o espectro visível de astros, denominou-se firmamento. Uma arquitetura celeste mitológica
que encontra paralelos interessantes, como na cosmologia Yanomami, narrada por Davi Kopenawa:

Depois, um outro céu desceu e se fixou acima da terra, substituindo o que tinha desabado. Foi Omama que fez o projeto, como dizem os brancos. Pensou no melhor modo de torná-lo sólido e introduziu em todo o céu varas de seu metal, que enfiou também na terra, como se fossem raízes. [...] O céu se move, é sempre instável. O centro ainda está firme, mas as beiradas já estão bastante gastas, ficaram frágeis. Ele se torce e balança, com estalos aterrorizantes. (Davi Kopeawa e Bruce Albert em A Queda do Céu.) 4

As ciências já nos fazem saber há tempos: a Terra é esférica e não é o centro do
universo, mas apenas um ínfimo corpo nas bordas de uma galáxia, que é só mais uma entre infinitas. Ainda assim, é interessante que se chame justo o céu de firmamento. O que nos firma, afinal, senão a certeza do desconhecimento? A certeza da eterna incerteza; a certeza da interminável busca por um conhecimento que nunca poderá ser abarcado, pois contém em si o infinito.

Uma sala escura e uma constelação de rostos, olhos, vozes em multidão. Cada história de céu é um mergulho no vazio. Em Orun, Paula Scamparini nos provoca com histórias- asteroides — narrativas que nos atingem sem dizer de onde vêm ou para onde vão. Algumas se pulverizam no atrito com nossa atmosfera pessoal, outras caem e formam crateras: transformam nossos pequenos territórios. Quantos céus podem existir? Quantas histórias pode a artista coletar?


Entre os tantos encontros que Orun enseja, como as histórias atravessam seu imaginário permeável, ávido por metamorfoses?

Sua pergunta me faz pensar nas bordas entre os corpos, os imaginários. A meu ver, não temos qualquer domínio desse território e, por isso mesmo, esse “lugar” do imaginário é uma via de comunicação direta entre as pessoas, pertencentes às mais diversas culturas, e que tenham experienciado as mais diversas formas de vida. A escolha pela permeabilidade a um comum me oferece duas vias de experiência: uma delas é a da convivência com uma compreensão de si perfeitamente maleável, móvel, ainda que num âmbito imaginário. A outra seria a de ser capaz de afeto por essa via, quando uma relação com o outro se estabelece, seja este quem for, ou ainda que o outro seja um corpo-paisagem. Como se, a cada encontro, meu corpo pudesse assumir novas camadas, formas, e não voltasse à forma anterior. Esse algo em comum é estabelecido pela troca entre imaginários, um espaço em que já não nos dissociamos tanto uns dos
outros. E percebo que minha busca é comum. Orun me proporcionou essas relações, que, de fato, remontam às séries de leituras compartilhadas em 2010. A recepção em mim do imaginário do outro também é definitiva, e posso afirmar que meu céu nunca será o mesmo de antes, mas sim que hoje é uma miríade de céus recolhidos e ali vivenciados. No sul, as tartarugas não envelhecem foi uma lembrança disparada por uma memória de infância compartilhada pela artista vienense Sabine Gruschup e, em resposta, desvelo uma memória coletiva suscitada pela mesma entidade que Sabine evoca em sua memória privada, a tartaruga. Há outros casos, e espero ainda haver inúmeros outros.


O céu acima pode ser fluido: um oceano. As estrelas nos guiam pelos oceanos. Olho para o céu e me localizo em vertigem, sem saber ao certo o que se move ao redor do que, bem como o que se move ao redor deste ente que viaja a milhares de quilômetros por segundo e não se sabe aonde irá chegar. A ciência e suas histórias de espaços e tempos sem fim. Seguimos no nosso singelo girar — tudo minúsculo e gigantesco; sempre perdidos na incomensurabilidade das escalas.

Todos esses olhares para cima nos dizem: há uma infinidade de trajetórias possíveis para a criação de novos mundos. A “Realidade” só existe para quem acredita. Para aquele que é tocado e transformado — e permeado. Mobiliza-se e reverbera sua existência particular — real é o sensível. Pode se dar no sonho, no transe, na ficção, na sobriedade factual. A imensidão de formas de perceber e estar no mundo é mais um mistério para o nosso firmamento. Diante das narrativas, somos atravessados tanto por relações que engajam ciência e arte, quanto por atualizações míticas e ancestrais. Poderíamos, portanto, pensar a Realidade como um conjunto de todas as realidades psíquicas — vividas,
sonhadas, imaginadas — de todos os seres existentes.

Esta artista coleta. E, em seu processo, nos envolve num fio, que tece memórias inventadas, capazes de se incorporar em nosso próprio imaginário. Não hierarquiza narrativas. Uma história é única, e mais uma entre tantas. Todas se sobrepondo e sobressaindo. Parâmetros? Métodos? Cada história é um mundo. Cada mundo se baseia em leis próprias.

Ciência, memória, sonho, ficção: como sua produção transita por todos estes universos inventados?

Compreendo todos estes campos como invenções, criações. Criações de ordens diversas, diante das quais, nesse contexto, por estarmos inevitavelmente imersos na cultura que compartilhamos, depositamos maior ou menor fé num universo ou noutro. A partir desta simples prerrogativa, é natural que as formas de conhecimento e experiências se equilibrem hierarquicamente, se modulem conforme a minha compreensão de mundo, do outro e de mim mesma. E então, esse trânsito já não impõe os obstáculos próprios de cada campo. Talvez seja este o maior privilégio do artista: poder transitar por áreas de conhecimento sem dever a elas uma resposta eficiente, ou sequer uma resposta. Conhecimentos são ferramentas, não somos ingênuos. Somos interlocutores da história da arte, mas com a mesma atenção com que nos aventuramos por campos menos conhecidos da cultura, e com a qual escutamos a conversas de balcão. Tudo merece atenção, e a atenção oferecida vai fazer o seu caminho, tecer um projeto, reorganizar possibilidades. Procuro assim ser pouco assertiva em minhas proposições, pois não acredito em discursos cheios de certezas. A verdade, uma única realidade, todas essas coisas inventadas. Acredito que pouco sabemos, e observo a mobilidade de tudo ao meu redor: do planeta, galáxias, nossos organismos, nossas formas sociais. Estamos em reconfiguração eterna. Somos universos e nos associamos ora a uns, ora a outros. Este olhar voltado a tantas ecologias e ecossistemas móveis esbarra nos meus dias, projeções, sonhos.

É sempre um caminhar ao redor de uma cratera,
cujo centro não se pode penetrar
.
Anselm Kiefer5

Nem só de belezas são feitas as histórias. O firmamento da dúvida nos leva a perguntar não só na forma de comos, quandos e ondes, mas também de porquês. Os porquês de uma humanidade que não quer dar a todos humanos as prerrogativas de humanidade.

Muitas histórias foram criadas para justificar violências; foram contadas para calar
outras versões dos acontecimentos. Ao nos lembrar de que as versões oficiais podem ser histórias opressoras, a artista ilumina as sombras da História, com “H maiúsculo”. E o que foi velado surge entre cacos e frestas — rachaduras nas narrativas textuais e iconográficas que formaram nossa cultura. Caminhar por todas elas, sentindo as fissuras na sola dos pés. Talvez o que foi calado não possa ser traduzido, mas pode ser sentido. Nas entrelinhas do real-concreto, sempre poderemos acessar o real-sensível.

Procurar pelas histórias emudecidas. Que as narrativas embargadas possam ser resgatadas, que se infiltrem na História. Que opressões não sejam esquecidas ou banalizadas. Restaurar é uma forma de cuidar e curar. Cada pequena história de dor e resistência com sua grande importância, ainda que sempre uma entre muitas.

Em meio a tantas realidades que se sobrepõem no seu trabalho, como ocupar as fissuras dos documentos e monumentos?

Mesmo que a arte, na história, tenha se desenvolvido graças a poderes privados, também sempre representou uma força pública de transformação. Acredito que uma das maneiras de ocupar as fissuras seja pela via da ficção. Minhas proposições não se colocam exatamente como resgate ou denúncia, ainda que possam ser lidas por esse viés. Elas sugerem uma reconfiguração, recriação. Pode parecer supérfluo, diante das urgências que vivemos, utilizar o conceito de ficção. Mas mesmo as formas-denúncias precisam encontrar caminhos de recriação, proposições projetivas, transformadoras. Acredito que um pensamento ecossistêmico, voltado à reorganização social, construtivo de universos comuns, possa conduzir a transformações. Os conceitos só têm poder numa esfera muito restrita. Penso na empatia como via de criação de mundos, e isso passa pela criação de ficcionais provisórios. Há ficções reconhecíveis, compartilhadas, acessíveis, como uma espécie de espaço suspenso de imaginários, ideias, sensações que compartilhamos, dependendo de como um gatilho é ativado. Há algo que se coloca em termos de intimidade, como belezas compartilhadas e não ditas, pois não pertencem à ordem discursiva. Mas há também duros embates no processo de troca. E eu os enfrento com a expectativa de ser capaz de acessar lugares que, embora bastante desconfortáveis, são ricos em reinvenção de si mesmo e do mundo. Existe algo no breu, no incontingente, um temível desconhecido que persigo. A floresta, o oceano... entidades desta magnitude, que me comovem profundamente e também fazem mover.

Todo esse modus operandi da artista se traduz também no corpo e materialidade. E é na matéria que algumas feridas históricas podem se traduzir: o pigmento que traduz o tom de pele é feito de barro; a fôrma que dá forma ao trabalho é o corpo. Vermelhos — as peças por fim se encaminham para um tom comum, que reverbera as próprias questões que a artista traz à tona. Reviver o trabalho de construir telhas de barro utilizando como fôrmas as pernas de pessoas escravizadas é também reviver o caráter simbólico dessa prática: corpo cativo que se faz matéria para uma construção social e física, utilizado como parte estrutural para lugares de poder e propriedade. Ao reviver este processo, a
artista lembra que as arquiteturas coloniais — físicas e sociais — se construíram através da exploração de corpos escravizados. A parte carne destas construções se evidencia.

Humanos que exterminam humanos; humanos que exterminam outras espécies. O tempo é vento sobre dunas, desvelando e cobrindo existências e resistências. No sul, as tartarugas não envelhecem. A todo momento, espécies e culturas são extintas. Mas como falar de humanidade em meio a tantos modos de viver e perceber o mundo? Quem é este ântropos do Antropoceno? Novamente, a versão oficial que oprime todas as outras, sustentada por maquinarias de poder que transcendem uma compreensão simplista.

Como sua pesquisa sobre ecossistemas encontra o tempo presente — este momento crítico em que nos encaminhamos para um colapso social, econômico, climático e ecológico?


Entendo que o espaço do contexto em que vivemos — e passível de ser exercido pelos artistas — é justamente um espaço propositivo, que não apenas retoma ou faz lembrar, mas que projeta impossíveis. Tudo é possível se nos livrarmos da perspectiva de um real construído. É possível sugerir reelaborações do mundo por meio de ideias que, num determinado momento histórico, nos parecem inalcançáveis. Não digo que os artistas mudarão o mundo, mas acredito que possuam a capacidade de alimentar imaginários, fazer pensar. Assim, podem atuar como dispositivos para que mudanças ocorram em outras pessoas. É justamente neste cenário que a arte se torna imprescindível, e não supérflua, porque tem justamente a maleabilidade de se adequar, criando modos de fazer que considere imprescindíveis para sua manifestação em nosso tempo e adiante. Não prevemos o futuro, mas podemos perscrutar o presente de maneira profunda. Fazemos uso de um tempo de reflexão de que poucas pessoas dispõem, construímos nossos repertórios neste sentido, e devolvemos essas reflexões a uma escala maior de pessoas. Criamos mais ecossistemas, entre tantos já existentes, propomos reações em cadeia, cujos fins não são o acúmulo, mas sim a retomada do tempo presente, a observação e inserção de cada interlocutor na posição em que se encontra no mundo — e isso é feito já a quatro mãos, ou duas cabeças, e, por outro lado, milhares, infinitas... Por isso, é importantíssimo que tenhamos artistas, os mais variados, atuando em todas as ordens, em todas as vias, da instituição ao espaço público, às inserções em áreas de conhecimento e em culturas distintas... Felizmente, somos um coletivo difícil de mensurar e de margear.

A artista nos arrebata com a complexidade de viver na incerteza. Nas frestas dos
azulejos quebrados, no desenho efêmero da areia ou na diversidade de narrativas, lembramos que viver é muito perigoso6 e que não há caminho certo para a apreensão da realidade, senão a vulnerabilidade do estar sensível e permeável ao outro. Há, em sua prática, uma espécie de rebeldia: a inconformação tanto com as histórias oficiais que nos foram contadas, quanto com o arsenal pessoal de experiências vividas. Há sempre mais para coletar, sempre uma nova história possível. Há sempre mais um encontro por vir — e
sua saga pelas narrativas escondidas nos mais distantes recantos é incansável. Afinal, as histórias são infinitas, como são os mundos possíveis, todos à deriva nos oceanos que ainda não alcançamos.

Na pluralidade de sua prática, o ato de criação de mundos e suas histórias se traduz em diversas linguagens. Textos, matérias, sons, assim como uma investigação dos espaços que carregam a História ou que sugerem histórias outras. Esses espaços-patrimônios sociais — sejam eles a igreja, a biblioteca ou a floresta; sejam eles europeus ou tropicais — são reais e ficcionais. São espaços e corpos que passam a ser cenográficos, em proposições que nos colocam na posição de duvidar da realidade. Carregados de camadas de significação, sugerem relações de poder em sua opulência e monumentalidade. Espaços vestidos de História encontram os corpos nus da artista: corpos multiplicados em série, despidos de identidade. São lugares para muitas cenas possíveis, cenários a serem percorridos por sonhos, deformando nossas noções de escala de espaço e tempo.

As linhas de histórias se embolam, se espalham, percorrem materialmente os ambientes e se revelam aos montes nas fotografias. Não temos acesso a todas essas palavras que percorrem as linhas do papel. De diversas formas, os trabalhos nos colocam diante da sensação de busca incessante por algo inatingível.

O que te move a escrever histórias inacessíveis ou que só poderão ser lidas em fragmentos?

Considero o ilegível uma qualidade capaz de transportar o interlocutor interessado a uma outra forma de compreensão. Estamos numa época em que uma única imagem sugere todo um contexto, uma frase define crenças. Sabemos lidar com essas supressões, mas não poderíamos definir um sujeito sequer da maneira que estivemos a fazer. Somos infinitamente mais complexos do que isso. Muitos dos meus trabalhos que lidam com este tópico, que denomino de ilegível, operam ao mesmo tempo como iscas, como que a negligenciar a linguagem escrita, ou mesmo falada, como meio primordial de comunicação, ou melhor, de troca, entre os indivíduos. Há recusa na ideia do ilegível. E a linguagem é a maneira através da qual nos formamos mais definitivamente. Uma imagem atravessa culturas de maneira mais livre do que as formas. Não digo que não tenhamos uma cartilha visual de cada cultura, e que não lidemos com elas, mas as imagens fazem imaginar mais do que as palavras, quando acionadas. Então, considero um burburinho de vozes uma entidade capaz de fazer perceber tanto quanto se eu fosse capaz de ouvir claramente o conteúdo de cada fala. Um punhado de palavras escritas, colocadas de maneira a não permitir, ou não sugerir sua leitura integral, transportam o interlocutor para um lugar de reflexão, de criação, de fala. Os discursos com os quais trabalho são, em geral, mediados por mim de maneira muito crua, no sentido de haver pouca intervenção. As frases aparecem completas. Uma história contada numa língua que não compreendo é respeitada como um todo e me contento em ouvir sua sonoridade, em compartilhar o balbucio de seus sons. Mas é claro que é possível fazer o mesmo pela via das imagens, o que também faz parte do meu experimento artístico. São miríades de significados possíveis que se projetam a partir de cada imagem, cada objeto. E penso muito nisso ao montar exposições que trazem peças realizadas em projetos distintos, ou seja, quando remonto, reorganizo minhas próprias proposições em conjuntos que operam transformando o sentido imediato de cada uma delas e indicando sentidos comuns. No entanto, todos esses sentidos anteriores estão ali, não deixam de existir, e dificultam a compreensão do interlocutor acostumado a resolver cada coisa que vê ou percebe diante de si com uma afirmação, um entendimento único. Não enalteço compreensões únicas, busco o extremo oposto. Entendo que só dedicamos o nosso tempo às coisas quando há alguma incompreensão envolvida.

Paula Scamparini explora espaços alegóricos de outras pátrias, assim como investiga nossas próprias alegorias, as pessoais e as coletivas. Alegorias que têm um avesso nada romântico. Restos de transe sobram pelos cantos. Experimentamos uma espécie de ressaca, na qual a memória, sonho e invenção se encontram e não se distinguem. Talvez alguma vertigem imaginária aconteça ao nos balançarmos num mar de lona, sobre um barco de carne que desliza nas águas para lá do firmamento. Talvez seja puro delírio enxergar barcos com velas vermelhas flutuando no breu da floresta.

Identidades são construídas, mas cada uma fala de seu lugar, mesmo que este lugar seja lugar nenhum. A artista é estrangeira e caminha por terras incógnitas. Encontra imigrantes e nativos, coleta e cria narrativas. O corpo é nu, o rosto são fios de histórias. Todo lugar pode ser cenográfico, toda experiência pode ser ficção. Nossa cabeça é um embolado — o que é meu, o que não é? Afinal, tudo o que não foi vivido sempre poderá ser sonhado — mesmo que sobre um colchão de concreto.