TEXTOS
A criação de mundos
— Charlene Cabral
Como sobreviver ao mundo
— Fernanda Lopes
Questões do contemporâneo
— Alberto Saraiva
Prefácio - orun
— Raquel Valadares
Firmamentos: uma conversa
— Mari Fraga e Paula Scamparini
Paula Scamparini: em contínuo ponto cego e recomeço
— Clarissa Diniz
barco sobre lona
— Fernanda Lopes
Restauros, retornos e recomeços
— Maria de Fátima Lambert
oca-oxalá: made in Portugal
— Lourenço Egreja, Clarisse Meirelles
orun
— Heloísa Meireles Gesteira, Paula Scamparini
série palavras
— Fernanda Lopes
sobre carapuças e luz na obra de Paula Scamparini
— Sônia Salcedo del Castillo
as 23 noites
— Sônia Salcedo del Castillo
Paula Scamparini desenvolveu no Carpe Diem uma obra para a sala azul do Palácio Pombal. A obra em formato instalação consiste numa pesquisa centrada nos reflexos da colonização na sociedade contemporânea brasileira a partir de livros escolares actuais no Brasil. A obra tem dois momentos. O momento visual onde podemos observar as imagens retiradas dos livros sobre azulejos chacota e dispostas no espaço, agrupada em temas como navegações, escravidão, missões jesuítas, escravização, quotidiano colonial, mapas, retratos, resistência negra e indígena. Há ainda o momento sonoro, no qual um índio narra em 2015 a história de sua terra como seria contada às crianças. A parte sonora é acompanhada pelo texto de Clarisse Meireles que contextualiza a história contada.
Ainda, os livros escolares de onde foram retiradas as imagens estão disponíveis para consulta na biblioteca do Carpe Diem.
Complementam e atualizam a obra a revista Le Monde Diplomatique Brasil de agosto de 2015, que discute a questao de classes no Brasil atual, e o jornal Extra de 8 de julho de 2015, que expõe um episodio de violência pública nas ruas do Brasil.
Ainda, os livros escolares de onde foram retiradas as imagens estão disponíveis para consulta na biblioteca do Carpe Diem.
Complementam e atualizam a obra a revista Le Monde Diplomatique Brasil de agosto de 2015, que discute a questao de classes no Brasil atual, e o jornal Extra de 8 de julho de 2015, que expõe um episodio de violência pública nas ruas do Brasil.
Clarisse Meirelles
Setembro, 2015
Clarisse Meireles (colaboradora do projeto-instalação “Oca-Oxalá – made in Portugal” de Paula Scamparini) é jornalista e coautora do livro “Um homem torturado, nos passos de Frei Tito de Alencar”, lançado em 2014 pela Ed. Civilização Brasileira. Edita, com Juliano Borges, o site O Canibal. Trabalhou durante dez anos em redações de grandes veículos no Rio de Janeiro, entre eles Revista Istoé, O Globo e Jornal do Brasil. Em 2012, coordenou o setor de comunicação da ONG Fundação Amazonas Sustentável, em Manaus, voltada para a conservação da floresta amazônica. Colaborou, como pesquisadora e redatora, ao Relatório da Comissão Nacional da Verdade. É mestre em Mediação de conhecimentos ambientais, pela Universidade de Versailles, França.
"Minha pátria é a língua portuguesa”, afirmou Fernando Pessoa. A pátria de Carlos Doetyro Tukano, cuja voz ouvimos aqui, é, portanto, a língua Tukano – nome igualmente de sua etnia.
Provavelmente, esta língua-pátria terá sido escutada pela maior parte dos visitantes pela primeira vez. E talvez só não venha a ser a última graças a gravações como esta, que podem tornar imortais vozes, línguas e histórias.
Imortais sim. Vivas, não necessariamente. No Brasil existem pouco menos de um milhão de índios, pertencentes a 243 povos e falando 150 línguas diferentes. Hoje quase um terço desta população indígena vive em centros urbanos. E as cidades, como definiu o pesquisador José Ribamar Bessa Freire, são cemitérios de línguas indígenas.
É preciso lembrar que, para povos de tradição oral, sem sistema de escrita, a perda da língua equivale à perda da própria memória dos povos. A língua é a força que atravessa o tempo transmitindo o conjunto de crenças e valores de cada povo, de geração em geração, relatando mitos fundadores e atribuindo significados – e onde pouco importam datas precisas ou feitos individuais, como consta na História do “homem branco”.
Carlos conta que os Tukano são uma das 27 etnias que, há séculos, povoam a bacia do Alto Rio Negro, extremo noroeste do Brasil, no estado do Amazonas, quase fronteira com a Colômbia – a nação Tukano, aliás, foi cindida em duas com o estabelecimento das fronteiras: os do lado brasileiro são tukanos orientais, os colombianos, ocidentais.
A região, de difícil acesso, passa a interessar mais à colonização portuguesa a partir da primeira metade do século XVIII, quando os colonizadores começam a subir a floresta em busca de mão de obra escrava. O contato com o homem branco se acelera a partir do fim do século XIX, com a chegada de missionários franciscanos. Estes combatiam as atividades dos pajés (líderes espirituais), desrespeitavam e ridicularizavam as tradições. Como eram poucos, foram facilmente expulsos pelos índios.
Porém, a partir dos anos 1920, os Salesianos ali se estabeleceram e permaneceram por décadas, cumprindo uma espécie de missão jesuítica renovada, a quase meio século do “descobrimento” do Brasil pelos portugueses. Os salesianos atravessaram diferentes governos, que financiavam a construção de escolas, incentivando um ambicioso projeto “civilizador”. Missionários italianos, alemães, espanhóis e ucranianos rezavam missas em latim e desprezavam e reprimiam os costumes, o sistema de crenças e as línguas locais.
É em 1971 que Carlos Tukano vai para a escola dos Salesianos, no vilarejo de Pari-cachoeira. Tinha 11 anos. Aprendeu a ler e escrever a língua portuguesa. E descobriu o que era índio. “Nunca sairá da minha cabeça a imagem da Primeira missa no Brasil (tela de Victor Meirelles): os índios nas árvores e ao redor de Pedro Alvares Cabral e outros portugueses. Até então, eu não sabia que era índio. Era Tukano”.
Como todos os meninos e meninas, Carlos Tukano passou a usar roupas, aprendeu a ter vergonha de andar nu e a sentir culpa de participar dos rituais de seu povo: “coisa do diabo” – a quem foi, também, apresentado na escola.
Para além dos castigos físicos, o ambiente era de extrema violência simbólica. Como só era permitido falar português, as crianças recém-chegadas tinham que ficar caladas. A escola devia apagar aquelas línguas consideradas bárbaras. A cada volta para casa, nas férias, a comunicação se quebrava: as crianças não queriam mais falar a língua materna e os pais não entendiam o português. Carlos Tukano recorda achar estranhos os costumes dos pais: comer no chão, andar nu, não haver banheiro.
Em 1979, felizmente, a crise do petróleo estanca as verbas governamentais brasileiras, e os Salesianos começam a desativar os internatos. No ano seguinte, a Congregação é denunciada pelo crime de etnocídio no Tribunal Russell, reunido em Amsterdã. Hoje, as escolas em terras indígenas no Brasil são bilíngues.
Carlos Tukano, que vive no Rio de Janeiro desde 1997, é casado e pai de duas filhas, e é líder da Associação (política) Indígena Aldeia Maracanã, diz saber rezar uma missa em latim “di cuore”, e se ressente por pertencer à última geração que teve a intromissão da religiosidade e cultura branca após ainda alguns anos vivendo em isolamento na aldeia. Pode-se dizer que o que os portugueses nomearam índio seja hoje de um conceito ultrapassado, morto aos poucos pela cultura dominante. Hoje, parece-nos, culturas estas parece-nos, em plena fragilidade histórica.
Provavelmente, esta língua-pátria terá sido escutada pela maior parte dos visitantes pela primeira vez. E talvez só não venha a ser a última graças a gravações como esta, que podem tornar imortais vozes, línguas e histórias.
Imortais sim. Vivas, não necessariamente. No Brasil existem pouco menos de um milhão de índios, pertencentes a 243 povos e falando 150 línguas diferentes. Hoje quase um terço desta população indígena vive em centros urbanos. E as cidades, como definiu o pesquisador José Ribamar Bessa Freire, são cemitérios de línguas indígenas.
É preciso lembrar que, para povos de tradição oral, sem sistema de escrita, a perda da língua equivale à perda da própria memória dos povos. A língua é a força que atravessa o tempo transmitindo o conjunto de crenças e valores de cada povo, de geração em geração, relatando mitos fundadores e atribuindo significados – e onde pouco importam datas precisas ou feitos individuais, como consta na História do “homem branco”.
Carlos conta que os Tukano são uma das 27 etnias que, há séculos, povoam a bacia do Alto Rio Negro, extremo noroeste do Brasil, no estado do Amazonas, quase fronteira com a Colômbia – a nação Tukano, aliás, foi cindida em duas com o estabelecimento das fronteiras: os do lado brasileiro são tukanos orientais, os colombianos, ocidentais.
A região, de difícil acesso, passa a interessar mais à colonização portuguesa a partir da primeira metade do século XVIII, quando os colonizadores começam a subir a floresta em busca de mão de obra escrava. O contato com o homem branco se acelera a partir do fim do século XIX, com a chegada de missionários franciscanos. Estes combatiam as atividades dos pajés (líderes espirituais), desrespeitavam e ridicularizavam as tradições. Como eram poucos, foram facilmente expulsos pelos índios.
Porém, a partir dos anos 1920, os Salesianos ali se estabeleceram e permaneceram por décadas, cumprindo uma espécie de missão jesuítica renovada, a quase meio século do “descobrimento” do Brasil pelos portugueses. Os salesianos atravessaram diferentes governos, que financiavam a construção de escolas, incentivando um ambicioso projeto “civilizador”. Missionários italianos, alemães, espanhóis e ucranianos rezavam missas em latim e desprezavam e reprimiam os costumes, o sistema de crenças e as línguas locais.
É em 1971 que Carlos Tukano vai para a escola dos Salesianos, no vilarejo de Pari-cachoeira. Tinha 11 anos. Aprendeu a ler e escrever a língua portuguesa. E descobriu o que era índio. “Nunca sairá da minha cabeça a imagem da Primeira missa no Brasil (tela de Victor Meirelles): os índios nas árvores e ao redor de Pedro Alvares Cabral e outros portugueses. Até então, eu não sabia que era índio. Era Tukano”.
Como todos os meninos e meninas, Carlos Tukano passou a usar roupas, aprendeu a ter vergonha de andar nu e a sentir culpa de participar dos rituais de seu povo: “coisa do diabo” – a quem foi, também, apresentado na escola.
Para além dos castigos físicos, o ambiente era de extrema violência simbólica. Como só era permitido falar português, as crianças recém-chegadas tinham que ficar caladas. A escola devia apagar aquelas línguas consideradas bárbaras. A cada volta para casa, nas férias, a comunicação se quebrava: as crianças não queriam mais falar a língua materna e os pais não entendiam o português. Carlos Tukano recorda achar estranhos os costumes dos pais: comer no chão, andar nu, não haver banheiro.
Em 1979, felizmente, a crise do petróleo estanca as verbas governamentais brasileiras, e os Salesianos começam a desativar os internatos. No ano seguinte, a Congregação é denunciada pelo crime de etnocídio no Tribunal Russell, reunido em Amsterdã. Hoje, as escolas em terras indígenas no Brasil são bilíngues.
Carlos Tukano, que vive no Rio de Janeiro desde 1997, é casado e pai de duas filhas, e é líder da Associação (política) Indígena Aldeia Maracanã, diz saber rezar uma missa em latim “di cuore”, e se ressente por pertencer à última geração que teve a intromissão da religiosidade e cultura branca após ainda alguns anos vivendo em isolamento na aldeia. Pode-se dizer que o que os portugueses nomearam índio seja hoje de um conceito ultrapassado, morto aos poucos pela cultura dominante. Hoje, parece-nos, culturas estas parece-nos, em plena fragilidade histórica.