TEXTOS
A criação de mundos
— Charlene Cabral
Como sobreviver ao mundo
— Fernanda Lopes
Questões do contemporâneo
— Alberto Saraiva
Prefácio - orun
— Raquel Valadares
Firmamentos: uma conversa
— Mari Fraga e Paula Scamparini
Paula Scamparini: em contínuo ponto cego e recomeço
— Clarissa Diniz
barco sobre lona
— Fernanda Lopes
Restauros, retornos e recomeços
— Maria de Fátima Lambert
oca-oxalá: made in Portugal
— Lourenço Egreja, Clarisse Meirelles
orun
— Heloísa Meireles Gesteira, Paula Scamparini
série palavras
— Fernanda Lopes
sobre carapuças e luz na obra de Paula Scamparini
— Sônia Salcedo del Castillo
as 23 noites
— Sônia Salcedo del Castillo
1 Ferreira, Paula Scamparini . Escrita de auto-paisagem”, tese de doutorado desenvolvida no Programa de Pós Graduação em Artes Visuais . Escola de Belas Artes . Universidade Federal do Rio de Janeiro . 2014. página 62.
2 Idem, página 86
3 Idem, página 68
4 Idem, página 69
2 Idem, página 86
3 Idem, página 68
4 Idem, página 69
CIRCULARIDADE
Em 2004, Paula Scamparini esvaziou um saquinho de leite em pó sobre o balcão
de sua cozinha para, em seguida, recolher o conteúdo extravasado com suas
próprias mãos, devolvendo-o à embalagem. La Serenissima (2005), um díptico
de imagens despretensiosas, porém rigorosamente produzidas a partir da ação,
oculta o que poderia ter sido a primeira — o derramamento — de uma sequência de três imagens, substituída pela cena de uma mão que ambivalentemente paira sobre a embalagem, sem que seja possível afirmar se ela está devolvendo ou retirando de lá seu conteúdo. Simultaneamente documentando e ambiguando a situação, La Sereníssima se equilibra numa espécie de ponto cego narrativo, no qual a cena contém sua própria reencenação, desfazendo linearidades por meio de imagens que impingem circularidade àquilo que narram.
Como demonstra La Sereníssima, os primeiros anos da produção de Paula
Scamparini — entre a formação em artes visuais na Universidade Estadual de
Campinas e a atuação como diretora de arte — foram mediados pela produção de imagens: fundamentalmente, pelo desenvolvimento de cenários pensados para o palco e para a fotografia, com desdobramentos no âmbito da gravura. Não é incomum encontrar, nas suas composições fotográficas de então, exercícios de sequenciamento de imagens cuidadosamente encadeadas de modo a não formar uma narrativa com começo, meio e fim.
Alongando suas sequências, Scamparini chegou a produzir polípticos com
dezenas de imagens ladeadas, cuja esbanjada linearidade fugia aos canonicamente retangulares enquadramentos paisagísticos ou retratísticos da fotografia. Suas tiras de imagens, de tão espichadas no espaço, convocam o espectador a percorrê-las, podendo dar marcha ré e, voltando ao ponto inicial, experimentar a circularidade narrativa posta à prova pelo superlativo cumprimento daqueles polípticos. Algo que, em versão ultrassintética, também o faz La Sereníssima, cuja leitura se pode inverter de direção, sem qualquer prejuízo à ambivalente circularidade.
O interesse de Scamparini pelo sequenciamento extrapolou o âmbito da imagem. Entre 2010 e 2011, a artista começou a dar corpo aos seus escritos por
meio de estreitíssimas tiras de papel, compostas por linhas emendadas de texto.
Transformados em fitas de aproximadamente 30 metros, os escritos rompem com a planaridade e assumem, como forma de espacialização, a circularidade já experimentada pelas imagens de Paula — é assim que surgem as Penélopes (2011). Intituladas de acordo com o mito da mulher que tecia de dia e à noite desfazia o que tecera enquanto esperava o retorno de Ulisses, seu marido, as Penélopes são dispositivos de leitura que — pela demasia de seu cumprimento e pela agência que a forma recortada adquire quando se insurge contra a planeza da folha de papel —, assim como La Sereníssima, tornam inapreensíveis os princípios, ou os fins, do que se dá a ler.
IRREVERSIBILIDADE
Em 2011, pela primeira vez, Paula Scamparini entregou uma de suas Penélopes para um grupo de estudantes da Escola de Belas Artes da UFRJ: “forma-se uma espécie de (...) engrenagem de passagem de rolos em aparelhos audiovisuais (...). De uma mão à outra, (...) a fita é esticada”. É diante da leitura que a coletividade fazia da Penélope que Paula passa a ter certeza de que havia “[inscrito] nas fitas textos sobre ciclos: ciclos de amor, ódio, tensão e inércia”. As tiras de texto circularmente arranjadas em torno de si mesmas foram surpreendidas, a partir da leitura-manuseio, com outras versões de sua própria espacialidade e sentido: “uma das integrantes (...) se agrada com a forma desmanchada do objeto. Trabalha com ele no ar, se enrola, coloca-o na parede como possível instalação. Mostra-me a potência do meu próprio dispositivo”1. A experiência despertou, na artista, momentos de “ira” quando lhe desagradaram comentários ou formas de manipular a Penélope, cuja circularidade foi forçosamente desfeita, restando aninhar-se como tripas.
Sentindo-se demasiadamente exposta, Scamparini compreendeu que as tiras de texto, além do corpo de seus escritos, são suas próprias tripas à disposição do toque e da atribuição de sentido do outro. Por ocasião de uma residência na 16a Bienal de Cerveira (2011), deixou um amontoado de suas “tripas como oferta de boas-vindas [aos próximos residentes] sobre a mesa de jantar. Ao lado uma instrução escrita a lápis: sirva-se”2. Com Penélopes, o entregar-se ao outro é revelado não como um romance, mas como “expurgo”3: “joguei minhas tralhas ao mundo. Façam o que quiserem”4. Diferentemente da possibilidade de reencenação salvaguardada nas sequências de imagens e nos cenários produzidos por Paula Scamparini, ao cumprir o destino de dar-se à leitura, nas Penélopes, a experiência do irreversível se fazia pungente.
ALTERIDADE E PODER
3margem (2015), site-specific criado para a galeria do Instituto Brasil Estados-Unidos, articula o interesse cênico de Paula Scamparini — intensamente exercitado na direção de arte, quando simulava cenários, paisagens e ambientes diversos — ao caráter irreversível e imprevisível da dramaturgia da “vida real”. As tripas nas quais tinham se transformado as Penélopes foram metaforicamente retomadas, naquela intervenção, como dimensão privada da vida social e visão íntima do que se passa atrás de janelas das fachadas da Av. Nossa Senhora de Copacabana. A despeito da natureza exuberante do Rio de Janeiro, ao longo de sua trajetória, a paulista Paula Scamparini sobremaneira se interessou pelas paisagens particulares e subterrâneas dessa cidade, do que também é exemplar o políptico Paisagem carioca (2004), sequência de fotografias feitas de dentro do metrô, fitando a paisagem entrevista por suas janelas.
Os visitantes da mostra do IBEU eram convocados a se sentar de frente para a
fachada do prédio vizinho, em alguma das dezoito cadeiras disponíveis, tomadas de empréstimo dos cômodos avistáveis desde a janela da galeria. Ocupando o ponto de vista da câmera, o espectador podia apreciar o cenário que fora, dessa vez, somente circunscrito pela artista: se a ela não coube construí-los, coube, noutra direção, criar dispositivos que os narrassem. Além das cadeiras, histórias privadas — recolhidas pela artista — dos moradores do entorno do IBEU foram organizadas e difundidas por meio de uma rádio livre que operou ao longo do período da exposição e que, sintonizada nos radinhos de pilha disponíveis para o público, funcionavam como uma espécie de roteiro em looping para as cenas que, imprevisível e reservadamente, se passavam diante de seus olhos.
A intimidade outrora tão explorada pela artista em desenhos e fotografias —
como nas vistas do seu corpo nu, desde sua própria perspectiva; ou nas sequências fotográficas de um dos cômodos de maior privacidade de sua casa, como o banheiro — foi, em 3margem, espelhada sobre o desconhecido e potencializada pela dimensão do incontrolável. O trabalho marca uma inflexão ética significativa, na qual o poder exercido sobre seus trabalhos anteriores (como denotado no desconforto da artista ao ver as Penélopes tornarem-se tripas) abre espaço para processos mais abertos à alteridade e ao tempo.
Em uma residência realizada na França (2012), por exemplo, Paula expressou
desconforto diante da natureza descontrolada do jardim posicionado em frente às janelas de seu estúdio, cujos galhos se tornavam, aos seus olhos, “entraves visuais”. Retratou-se buscando espaços de visibilidade através daquelas ventanas, inconscientemente reencenando uma gravura (2003) que fizera quando ainda era estudante, na qual sua mãe fita através de uma janela. Sobre uma dessas vidraças, a artista construiu uma grade com suas tiras de escritos, como se quisesse mensurar e disciplinar a força que lhe escapava e confrontava. Depois, cortou por si mesma os galhos que a desafiavam. Ainda naquela mesma residência, viajando de carro à noite, comentou, sobre o breu que impedia a percepção das paisagens: “a dor de abrir mão da paisagem é a mesma de deixar de lado o conhecimento e o mínimo controle do que se apresenta a mim, ou faz deste minha posse”.
Talvez porque venha se aproximando do outro (por vezes, também de sua intimidade), Paula Scamparini parece se abrir cada vez mais ao que lhe escapa, experimentando modos de simetrizar as relações de vulnerabilidade e disponibilidade que seu trabalho suscita — em suas pesquisas recentes, a natureza tem ocupado o lugar de sujeito, emancipando-se do confronto que marcou sua produção anterior. É o caso da ação (2016) realizada nas Oficinas do Convento de Montemor-o-novo, em Portugal, durante a qual a artista filma a si própria produzindo argila, enquanto escuta áudios de relações sexuais, gravadas a seu pedido. Partilhando, com aqueles que assistem ao vídeo, os sons que, na ação, escutava com a privacidade de um fone de ouvido, a artista traduz, para o barro e para seu público, sua subjetiva resposta à ambígua intimidade do outro, cuja sonoridade vai e vem, entre a sensualidade e a violência.
CRÍTICA COLONIAL
Se 3margem tensiona o poder que tradicionalmente a arte tem exercido sobre a
alteridade ao representá-la, é patente que Nós-Tukano (2015) lhe provoca constrangimento. Paula Scamparini cria uma espécie de armadilha semântica ao convocar pessoas não-indígenas — todas brancas — a “repetirem” a fala proferida na língua materna de Carlos Tukano (uma das lideranças indígenas da Aldeia Maracanã, no Rio de Janeiro), enquanto a escutam em fones de ouvido. Pela incapacidade de repeti-la, os não-indígenas (dentre eles, a artista) que se dispuseram a reencenar aqueles sons cujos sentidos lhes escapam, desvelam as práticas de extrativismo e de emulação sobre as quais sustenta-se a colonialidade.
O gesto disparador de Nós-Tukano está atento à violência epistêmica que constitui a história colonial em sua dimensão linguística: no Brasil, milhões de indígenas foram cultural e fisicamente torturados até o silenciamento de suas vozes e signos, ao ponto do completo extermínio de centenas de suas línguas. Por sua vez, a incomunicabilidade à qual foram legados milhões de indígenas encontra, na obra anterior de Paula Scamparini, um território comum de interesses em torno da impossibilidade de enunciar.
Enquanto a ilegibilidade foi vertebral no corpo de trabalhos em torno das Penélopes, houve outras situações nas quais a artista esteve às voltas com comunicações inviáveis. É o caso de uma residência em Munique (2014), quando Paula ficcionalizou um coletivo chamado “Oh, yes, nós temos bananas”, por meio do qual pedia aos demais artistas que lá trabalhavam para travar alguma comunicação através de barquinhos de papel deixados nas portas dos estúdios do local. Noutras ocasiões — na biblioteca de La CourDieu (2012) e na Biblioteca José de Alencar (2014) — Scamparini criou jogos que brincam com sua própria invisibilidade e inacessibilidade, posto que formados por peças aleatoriamente dispostas entre os milhares de livros dessas bibliotecas, à espera de encontros que os tornem passíveis de serem jogados.
Entretanto, não é somente a preocupação com a incomunicabilidade que perfaz
Nós-Tukano. A circularidade e o ponto cego narrativos presentes nos primeiros
trabalhos de Paula são retomados em chave linguística para, numa inflexão recente de sua obra, apontar para a crítica colonial. Emulando foneticamente a fala de uma liderança indígena, Nós-Tukano evidencia que o que se torna ambíguo e se esvazia por meio da provocação da artista não é exatamente a narrativa, mas sobremaneira a ideia do “nós”. A alteridade Tukano é dobrada por sobre os sujeitos de cuja perspectiva o indígena é tomado como “outro”, demonstrando suas arbitrariedades e apontando, na obra de Scamparini, para novos compromissos.
SARARÁ
Paula é branca de cabelos claros e crespos. É, como popular e quase sempre pejorativamente são tipificados os “sararás” no Brasil, um corpo de características ‘mestiças’. Sarará é também o título de uma ação Sarará (2016) realizada por ela e um grupo de alunos e alunas, todos negros, durante a qual penteiam seus cabelos secos. Em círculo, num misto de descontração e embaraço, com pentes diversos, vão atravessando seus muitos cachos, desalinhando-os e, assim, eriçando suas cabeleiras black. Como uma das únicas pessoas de pele branca, é fundamentalmente dada a presença da artista que aquela coletividade se denomina como Sarará — termo que, índice da complexidade étnico-social perpetrada pela colonização, mostrou-se como a única adjetivação
possível àquele “nós”. Tal como Nós-Tukano, Sarará foi uma arapuca montada pela artista para colocá-la na posição de um sujeito que ocupa o lugar da branquitude.
Ainda que seus cabelos tenham sido desde cedo objeto de delicada atenção
— como no tríptico Nus (2002) ou em Cartografando o impossível (2012), no qual mapas da França cujas rodovias haviam sido percorridas pela artista são emaranhadas pela sobreposição de tufos de seus cabelos —, Sarará representa em sua obra a primeira vez em que são racializados. Contudo, certo movimento nesse sentido já vinha sendo esboçado quando a artista produziu a série Verboten (2014), um conjunto de fotografias nas quais seu corpo nu e multiplicado, configurando cenas de narrativa circular, tem sua rostidade a um só tempo protegida e anulada pela presença de uma profusa cabeleira negra: um de seus amontoados de tripas que, tingidas de preto, desde 2012 vinham habitando o imaginário de sua obra como as Pretinhas.
Nesse processo de racialização, entendendo-se e problematizando-se como
branca, Paula Scamparini tem fundamentalmente tomado Portugal como pano de fundo para seus pensamentos e gestos poéticos. Em razão de uma sequência de residências realizadas em diferentes cidades do país, tem podido experimentar a posição de ser, em nossa antiga metrópole, uma ex-colona. Circulando pela Europa na condição de artista do Sul global, percebe-se lida como não-branca — qualquer identidade difusa entre a “latino-americana” e a “brasileira” —, ao passo que, sabendo-se sarará, tem igualmente a consciência de, no Brasil, ocupar o privilegiado lugar da branquitude.
É desde essa complexa e contraditória imbricação identitária que, uma vez em
território português, Paula tem produzido trabalhos que, por se endereçarem às leituras do colonialismo europeu e do imperialismo marítimo português em suas próprias terras, são obras contextualmente específicas. Suas eventuais “remontagens” fora do contexto para o qual foram concebidas seriam, assim, emulações avizinhadas àquela vocalização de Nós-Tukano.
PROFANAR
Em terras portuguesas, dentre os diversos trabalhos realizados pela artista, um chama especial atenção por seus desdobramentos: Oca-oxalá (2015), instalação composta por azulejos portugueses emulados em sua iconografia e técnica originais pela transferência, para suas superfícies, de imagens que, produzidas pela colonização — e que circularam eminentemente em gravuras, livros, jornais e documentos oficiais da metrópole —, hoje são largamente reproduzidos e quase sempre naturalizados em materiais didáticos e meios de comunicação brasileiros.
Dispostos no chão do Carpe Diem (Lisboa), os azulejos formavam uma camada imagética de memórias atrozes: torturas, escravização, segregação, exotização, violências de toda ordem. Ocupando a quase totalidade do piso de uma sala de passagem, o gesto da artista não foi apenas reunir e reproduzir esse imaginário colonial, mas conduzir o público do centro cultural a pisoteá-lo, reencenando a violência de novamente passar por cima daqueles sujeitos e daquelas histórias. Ao fazê-lo, quebravam-se as cerâmicas, fato que ensejou Restauros (2017), intervenção realizada no Museu Nacional de Soares dos Reis (Porto), onde as cerâmicas quebradas foram exibidas como uma espécie de sítio arqueológico de cacos de um imaginário e sua própria historicidade.
Ambiguamente apontando para a possibilidade de conservação, Restauros por
sua vez sublinhava não as imagens (como ocorrera em Oca-Oxalá), mas sua condição fraturada. O mar de azulejos quebrados — gesto de profanação de uma das mais reconhecidas e admiradas tradições portuguesas — abria espaço, por sua vez, para a aparição de diacronias entre aquela iconografia canônica. Fissuradas, as imagens não coincidiam perfeitamente consigo mesmas, metáfora das desigualdades históricas que operam também na arte. Assim, Restauros silenciosamente sustenta a pergunta que politicamente fricciona a posição (de violência e de hegemonia) da arte diante da representação da alteridade: a quem interessa restaurar o imaginário colonial?
MONTAR
Restauros, o quebra-cabeça em que se transformou Oca-Oxalá, nos devolve ao
caráter fundante — e até então largamente presente — da prática da montagem na obra de Paula Scamparini. Evidente já em suas primeiras sequências fotográficas, na experiência como diretora de arte ou em séries tão cênicas quanto manipuladas quanto Verboten (2014) ou Palavras (2012), a montagem retorna com expressiva força em sua produção mais recente, introduzindo, ainda, outras formas de operar. Se, diante de certa monumentalidade histórico-arquitetônica europeia, naquelas sequências fotográficas, a artista fundamentalmente interviu nos ambientes com seu corpo e suas tripas — infundindo-os de estranhamento —, em experiências mais recentes, despregando-se da perspectiva da historicidade colonial, montar parece
emancipar-se enquanto pensamento poético e político e, assim, Scamparini parece se lançar em direção de alegorias e dramaturgias.
Em que pese o fato de que, na obra de Paula, a trajetória das Penélopes é a
própria transformação de um dispositivo em uma presença dramatúrgica — um modo circular de leitura que se torna tripa, escultura, paisagem, cabeleira e, nas cenas em que ocupam bibliotecas e outros interiores, também presenças prenhes de agência —, em suas últimas exposições não é somente a matéria que atravessa processos de rearranjo e de manipulação, senão é o próprio processo de reorganização que se torna matéria central.
Nesse âmbito, os moldes — que já se anunciavam nos clichés (tão reais quanto
ficcionais) de jornais que compuseram a exposição Restauros, bem como em Vermelhos, que remonta à prática colonial de produzir telhas que tomavam as coxas como moldes — parecem ocupar um papel fundamental, posto que salvaguardam uma relação indicial com o que existe, ao passo que abrem possibilidades para a criação de novas versões daquilo que seria supostamente real, ficcionalizando-as.
Em In the South, turtles do not age (2018), o interesse pela dimensão histórico-
-política dos sítios arqueológicos que fora experimentado em Restauros retorna em chave cênica: para além de aludir a um sítio, Paula Scamparini efetivamente emula o solo fossilizado de um lugar. Como escultora, elabora, a partir de moldes de ossadas animais, os volumes que atuam como fósseis. Como diretora de arte, compõe com eles e com a areia que retira de uma praia vienense, com o espaço e com a luz da galeria de arte. Tomando como pano de fundo o recente e criminoso rompimento da barragem de Mariana, em Minas Gerais, monta uma situação dramatúrgica que igualmente joga com os traumas e memórias daqueles que testemunham a instalação.
Enquanto as “tripas” de uma tartaruga surgiam em In the South, turtles do not
age, noutra de suas exposições recentes, Barco sobre lona (2018), Scamparini reuniu pedaços de alegorias de carnaval para remontá-las a partir de seus avessos. Assim, logo na entrada da Galeria Aura (São Paulo), um rinoceronte de estridente laranja recebia o público com suas tripas de isopor e ferragem, revelando, junto à concavidade de seu interior, que o não tradicionalmente exposto nas alegorias era ali o que estava em pauta.
Ao recombinar partes destituídas de suas alegorias originais, Paula Scamparini
confere à montagem um poder de realegorização daquilo que parecia desprendido de alguma trama de sentidos. Sobrepondo, costurando ou somente aproximando pedaços alegóricos, compõe situações que, ao invés de aludir a temas específicos, passam a constituir imagens do próprio processo de alegorização: a contínua negociação e autofagia dos signos, em busca da produção de novas significações. Não à toa, integraram a exposição Barco sobre lona algumas das mais dramatúrgicas imagens da série Verboten, que, reposicionando as Pretinhas e a posição de sujeito da própria artista, quando interpostas a essas esculturas de clima momesco, se dão a ver enquanto partes de uma obra que não deixa de lado a possibilidade de alegorizar a si mesma.
TRABALHO
Paula Scamparini conta que, quando em residência, não é incomum ver seu trabalho discutido publicamente numa língua a ela incompreensível. Na abertura da mostra In the South, turtles do not age, chegou a testemunhar, por mais de 40 minutos, um discurso curatorial em alemão a seu respeito. Assim, quando fora de seu país, parece experimentar um pouco da incomunicabilidade e sua consequente violência, as quais, nessas tão assimétricas relações de colonialidade, tanto se dão através da arte que, inclusive — como nos mostra a obra de Scamparini —, passam a interessá-la.
Enquanto seus últimos trabalhos foram realizados no contexto de residências
na Europa, a experiência de ser brasileira, ou mesmo como latino-americana, mas
certamente uma mulher, também marcou os anos nos quais tem vivido nesse trânsito global e neoliberal das artes. Percebendo-se consumida em sua subjetividade e lugar de fala por sofisticados e agressivos dispositivos de criação de sentido e de valor (leia-se: capital) no assim chamado mundo internacional da arte, a artista buscou reagir por meio de seu trabalho. Na exposição Mexeu com uma, mexeu com todas (no translation available) (2015), realizada em Viena, reuniu trabalhos que retratam mulheres, muitas delas imigrantes, com as quais conviveu durante sua residência alemã. Em conjunto com vídeos em que nos encaram em silêncio (L’aperitif, 2012-2015) e retratos fotográficos cuidadosamente dilacerados em tiras (Sometimes we get to cut people’s eyes, 2014), também apresentou textos tão biográficos quanto ficcionais a seu respeito, além de áudios de relações sexuais: um bando de mulheres silenciadas, enunciando através do olhar emudecido, da intimidade explicitada ou da voz (no caso, texto) de outro alguém. Ainda assim, um bando.
Foi também em Munique onde Paula concebeu Verboten. O exército montado
pela vastidão dos corpos daquela mesma mulher é, como se depreende, uma pre-sença de assombro. Espectralmente, aquelas mulheres ocupam a totalidade dos espaços, se multiplicando de acordo com o deslocamento de nosso olhar: elas estão por toda parte, como num looping fantasmagórico. Se, em ambientes de caráter suntuoso, parecem monumentalizar-se, quando de volta ao Brasil, são capazes do gesto oposto: fazer murchar aqueles castelos (a princesa no castelo de hera, 2014).
Pois aqui a artista é professora. Antes de tudo, limpa seu local de trabalho.
Diante das janelas empoeiradas do ateliê de escultura da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, se põe a faxinar (Ficções, 2015). Esfrega as grandes vidraças para ver através de sua histórica opacidade, posto que não é necessariamente o que está fora que impede a vista. As janelas, há muito presentes em sua obra — gravura (2002), Paisagem carioca (2004), A la recherche du paysage (2012), 3margem (2015) — se tornam protagonistas. Emancipadas da condição de interface entre interior e exterior, tornam-se em si mesmas um território, uma paisagem, um sujeito de incontornável presença. É contra a sua densa opacidade que investem a artista e sua flanela; em vão. Há algo que não se quer cristalino.
PENÉLOPE
A busca por um ponto cego narrativo insiste. Como espelhos opacos, as inlimpáveis janelas da EBA se tornam pano de fundo para o gesto da artista: continuar seu trabalho. Como dá a ver sua recente videoinstalação Orun (2019) — uma polifônica constelação de memórias e imaginários sobre o céu, contados por dezenas de pessoas cujo ponto de vista cósmico é o território brasileiro —, a artista mantém-se produzindo as condições de incomunicabilidade, ilegibilidade, invisibilidade e intraduzibilidade que desde cedo têm povoado seus interesses. Continua com ações que, depois, os próprios gestos poéticos irão sutilmente sabotar, retalhando intenções até que, transformadas em frágeis topologias de papel (como em Margens, 2011) ou de cerâmica (Vermelhos, 2016), se partam. Falhas necessárias para que, em algum momento, possa mais uma vez recomeçar, em contínuo.