TEXTOS
A criação de mundos
— Charlene Cabral
Como sobreviver ao mundo
— Fernanda Lopes
Questões do contemporâneo
— Alberto Saraiva
Prefácio - orun
— Raquel Valadares
Firmamentos: uma conversa
— Mari Fraga e Paula Scamparini
Paula Scamparini: em contínuo ponto cego e recomeço
— Clarissa Diniz
barco sobre lona
— Fernanda Lopes
Restauros, retornos e recomeços
— Maria de Fátima Lambert
oca-oxalá: made in Portugal
— Lourenço Egreja, Clarisse Meirelles
orun
— Heloísa Meireles Gesteira, Paula Scamparini
série palavras
— Fernanda Lopes
sobre carapuças e luz na obra de Paula Scamparini
— Sônia Salcedo del Castillo
as 23 noites
— Sônia Salcedo del Castillo
Ao longo de mais de uma década de produção artística, Paula Scamparini tem buscado pensar e lidar com diferentes maneiras de estar no mundo. Na exposição individual Matriz, realizada no Centro Atlántico de Arte Moderno (CAAM), foram reunidas obras inéditas que transitam livremente pela fotografia, o vídeo, a instalação, o uso da cerâmica e a construção de objetos, e revelam algumas dessas estratégias. Em conjunto, seus trabalhos (os que estão na exposição, e todos os outros) se referem primeiramente a um mundo circunscrito ao espaço expositivo, articulando e tensionando questões do campo da arte, muitas vezes borrando e extrapolando esse limite especialmente através interesse pelo cinema e a lógica cinematográfica.
Há também em toda a produção da artista o forte interesse por outros mundos, todos aqueles que extrapolam o espaço da arte. Os inúmeros corpos que povoam suas obras são, cada um, uma possibilidade de mundo em si. Despidos ou trajando roupas na maioria das vezes impessoais, esses corpos nos dão poucas pistas de qual tempo ou espaço habitam. Podem ser de todos as épocas, de todos os lugares. Sozinhos ou em grupo, são construídos como imagens entre a realidade e a ficção (ou a encenação), o natural e o artificial, a presença e a memória. Corpos que assim como atores, muitas vezes se repetem, ocupando diferentes mundos, assumindo papeis e identidades variadas. A produção mais recente da artista – mais especificamente a partir de 2019 – é um exemplo claro disso com obras realizadas durante os primeiros momentos da construção da sua figura também como mãe, matriz da vida, tornando incontornáveis as implicações e discussões individuais, sociais, políticas e pessoais a partir desse outro lugar da experiência de estar no mundo.
E aqui é importante chamar atenção para esse movimento pendular, de negociação constante entre as experiências de Paula Scamparini em diferentes papéis sociais (como mulher, artista, professora universitária, diretora de arte, brasileira, latino-americana e, mais recentemente, mãe), e também, na constatação de que essas experiências extrapolam o campo individual, espelhando-se e se multiplicando-se a todo momento na coletividade. Dentro e fora do campo da arte.
Logo no início de sua produção como artista, Paula recorreu aos seus guardados e experiências antigas para buscar outros caminhos para novas obras. Encontrou seus escritos, que sempre estiveram presentes como parte do processo de construção e o imaginário dos trabalhos, mas que nunca foram tomados como uma obra em si. Partiam de qualquer coisa que chamasse sua atenção, e iam se desdobrando como uma escrita fabular, com livres associações, sem muita preocupação com uma narrativa de início, meio e fim.
Reencontradas, essas palavras começaram a ganhar corpo, presença física, inicialmente em leituras coletivas, realizadas entre 2010 e 2011. Os textos foram impressos e depois recortados em tiras, coladas uma depois da outra, tirando a leitura da folha de papel e levando-a para pequenos rolos, também chamados de tripas pela artista. A leitura implicava no desenrolar dessa estrutura e depois de um tempo, passando por várias mãos, sob vários olhares, aquela linha de palavras percorria quase toda sala, e já não era mais possível saber onde aquela escrita começava. Redesenhando o espaço, esse processo também redesenhava a escrita. E reconstruíam imagens, como um rolo de filme sendo desenrolado diante dos olhos.
Volto a esse ponto distante da produção da artista, porque acredito que nesse compartilhamento coletivo de palavras pessoais estão embriões de muitos dos caminhos que sua obra vai ganhar a partir daí, em trabalhos posteriores. A exploração da materialidade dos suportes é um deles. Esses escritos flertavam com as noções de escultura e de vídeo quando começaram a ser apresentados nesse formato de folhas parcialmente cortadas, montados em tiras, ou, logo na sequência quando começaram a ganhar mais corpo e personalidade, em trabalhos fazendo em muitos casos com que a leitura (total ou parcial) já não se apresentasse como uma questão importante para essas palavras. Amontoados de palavras silenciosas (ou silenciadas) se apropriavam dos espaços existentes, penduradas em paredes ou janelas, desenroladas sobre a mesa, ou em forma de ações em espaços abertos ou fechados.
Nesse processo, as experiências da artista em residências artísticas assumiram um importante papel: tirar a obra, o pensamento e seu próprio corpo do conforto do espaço conhecido do ateliê, do seu país natal, do seu idioma materno, em direção a uma paisagem desconhecida. Foi no Instituto La CourDieu, no interior da França, em 2012, por exemplo, que as palavras se encontraram com a prática fotográfica. A partir de anotações próprias, em português, e de falas dos poucos habitantes locais com quem conversava durante pequenas viagens diárias de carro pela região, a artista construiu instalações de papel que se misturavam aos cenários locais, tentando recriar ou relembrar a presença que esses espaços vazios tiveram em outros momentos. Sua escrita deixou de ser objeto para ser personagem, e o espaço deixou de ser real para se apresentar como cenários, lugares narrativos, fabulares, onde acontecem histórias que não existem, inventadas pela artista. Já não é possível ler. Só imaginar.
Uma imaginação que em trabalhos posteriores vai ser capitaneada por outros dois elementos derivados do uso da palavra: a sonoridade e a necessidade do outro. Palavras escritas emitem sons, mesmo quando não são lidas em voz alta. E são lidas por quem as escreve, mas também são desejos de comunicação com o(s) outro(s). Na instalação audiovisual 3amargem que ocupou a Galeria IBEU (no Rio de Janeiro) em 2015, por exemplo, o visitante era convidado a se sentar em uma das 18 cadeiras enfileiradas de frente para a grande janela presente no espaço expositivo. Através dela era possível ver as janelas dos apartamentos dos prédios do outro lado da rua, assim como o movimento dos carros e dos pedestres lá fora.
As cadeiras foram emprestadas dos apartamentos de moradores dos apartamentos com janelas avistáveis da galeria. Sentados ali, os visitantes podiam ouvir, transmitidas por uma estação de rádio relatos dos moradores locais, e saber mais sobre seus modos de vida, preconceitos e sonhos. O som e a ideia de um cinema ao vivo visto pela janela, eram os pontos de partida para as narrativas imaginadas pelo público da exposição. Histórias privadas postas a público, mas mantendo seus protagonistas anônimos. Durante a abertura da exposição, os moradores dos apartamentos do outro lado da rua puderam experimentar o lugar de espectadores ao também observar os visitantes da exposição desde suas janelas, ouvindo em casa ao mesmo áudio que o visitante da galeria. Esses pequenos rádios de pilha também foram espalhados por alguns locais próximos, como bancas de jornal, charutaria, café e portarias, transmitindo, no curso da exposição, as histórias anônimas para aqueles que por ali passaram.
Há também um outro aspecto da sonoridade e do outro a ser desenvolvido da produção de Scamparini, especialmente no viés que tem se interessado pela compreensão da transmissão de cultura via oralidade (especialmente considerando os povos tradicionais) e embate entre ela e a documentação de conhecimento sobre papel. Dentro da produção da artista há em 2015 a videoinstalação Nós-Tukano, formada por duas projeções. Em uma delas vemos Carlos Doethiro Tukano, líder político e cacique da maior aldeia indígena urbana no Brasil, a Aldeia Maracanã. Ele narra a história de sua terra para um grupo de crianças, em sua língua-mãe. No vídeo ao lado, que acompanha a fala de Doethiro, mulheres e homens não indígenas de diversas origens procuram reproduzir as palavras dele mesmo sem entender seus significados. Carregadas de significado, elas só fazem sentido para quem compartilha dos mesmos códigos. Para os demais elas soam quase como um canto abstrato, uma melodia.
Outra obra importante produzida por Scamparini dentro desse contexto é também uma videoinstalação. Orun foi apresentada pela primeira vez no centro cultural Oi Futuro, no Rio de Janeiro, em 2019. A obra é um desdobramento de sua pesquisa sobre o céu, iniciada anos antes, em 2015, reunindo diferentes pontos de vista sobre o céu. Na instalação, mais de 60 monitores apresentavam representantes de povos da cidade (incluindo astrofísicos), povos da floresta (indígenas), povos do interior pantaneiro (quilombolas), das montanhas e do sertão, cada um deles narrando sua interpretação sobre o cosmo, em variados sotaques, idiomas e dialetos. Foram mais de 200 entrevistados, em cerca de 15 idiomas.
Ao longo de todo esse processo, testando e ampliando repertório de discussões ligadas à presença e ao lugar do corpo, individual ou coletivo, presente ou em rastros, Paula Scamparini também discute de maneira recorrente as possibilidades e os limites da imagem técnica. E aqui, falar de imagem técnica é se remeter quase que obrigatoriamente, ou inevitavelmente, ao cinema e a lógica cinematográfica. Quando perguntada sobre suas referências, a artista sempre enfatiza como é no campo audiovisual que se constituíram, e ainda se constituem, boa parte das referências que habitam seu imaginário. Muito por conta de sua formação e carreira anterior, exercida durante dez anos, como diretora de arte para teatro e cinema. Essa é a lógica que estrutura e guia sua produção como artista.
Na exposição Barco sobre lona, realizada em São Paulo em 2018, o ponto de partida foi o que ela considera uma das mais fortes imagens da história do cinema: a cena final de E la nave va (1983) de Frederico Fellini (1920-1993). Enquanto Orlando e um rinoceronte – dois dos sobreviventes de um navio que começa a afundar depois de ser bombardeado – dividem o espaço de um pequeno barco, vemos que a ventania, que ajuda a construir a dramaticidade do momento, faz com que um dos operadores de câmera tem dificuldade de segurar o equipamento que filma a cena.
Não se trata exatamente de um corte, mas de uma passagem estranhamente natural conforme o enquadramento da câmera vai abrindo e a tragédia que até então mobilizava nossa atenção e nossas emoções divide lugar com os bastidores de sua construção. Somos lembrados que o filme não é a realidade, mas uma imagem construída com andaimes, grua, equipamentos de luz e som, equipe de filmagem, ventiladores e até um sistema mecânico desenvolvido especialmente para reproduzir o balanço do mar, feito de plástico, dentro de um estúdio. Do cinema, especialmente do realismo, ou neorrealismo felliniano, Paula parece herdar a compreensão da diferença entre a coisa e a imagem da coisa. Não para escolher entre elas ou tentar nos fazer acreditar que o que estamos vendo é algo em si e não sua imagem (construída), mas para se colocar nesse espaço entre, onde esses dois pontos de vista convivem.
É a possibilidade de construção, a partir do real, o ponto de interesse, e que implica, quase que obrigatoriamente em considerar também as possibilidades de desconstrução e a reconstrução. As obras de Paula Scamparini, desde as primeiras fotografias até as práticas mais recentes de ações, parcerias, instalações e residências artísticas, são como desafios para olhar, ler, ouvir, perceber. Como possibilidades de reinvenção da percepção do mundo a partir do tensionamento entre realidade e ficção (ou encenação), natural e artificial. Desafios colocados primeiramente para ela mesma e depois estendidos para o público e também para o sistema de arte.
EmBarco sobre lona, o público era recebido pela peça central da mostra: a cabeça de um rinoceronte, feita de isopor, resquício de alguma alegoria de carnaval. Ela ficava quase que de costas para entrada, tornando nossa primeira visão não o “rosto do bicho”, mas muito mais o corte na altura do pescoço, dando a ver primeiro, toda a estrutura interna da peça. Essa escultura, assim como as fotografias nas paredes, propunha a construção cênica como estratégia para colocar em dúvida a ideia que temos de realidade.
No caso das fotografias, apesar de trazerem em si o pressuposto fotográfico de congelamento de um instante que já passou, causavam estranheza quando se percebia que havia algo que tornava aquela existência no mundo real impossível – como, por exemplo, reconhecer em uma imagem que os corpos eram todos o mesmo, ocupando ao mesmo tempo espaços diferentes. A mesma dinâmica se fazia presente na instalação com restos de fantasias e alegorias feitas em materiais baratos como isopor, plumas e paetês, mas que durante o carnaval tornaram possíveis personagens e realidades inventadas.
Por fim, me parece importante ressaltar um aspecto que me chama atenção na exposição Matriz, certamente visível aos que visitaram o Centro Atlántico de Arte Moderno (CAAM) nas Ilhas Canárias, mas que também se faz presente mesmo a mais de 6 mil quilômetros de distância, aqui da onde escrevo este ensaio, no Rio de Janeiro (Brasil). Tanto os conjuntos fotográficos quanto as videoinstalações foram configurados pensando em como suas presenças poderiam dialogar com o espaço expositivo (considerando suas dimensões e possibilidades de circulação) e a arquitetura do museu (levando em conta especialmente suas características específicas).
Nesse sentido, se valeram especialmente escala, e mais do que se adequar ao espaço, o ocuparam, o tomam para si. Reivindicam uma presença que não é só poética, mas também física. Imagens técnicas (seja a fotografia ou o vídeo) que ao longo da produção de Paula Scamparini sempre foram tratados como coisa concreta, como matéria que depois de capturada, editada, cortada, sobreposta, subtraída, deslocada, multiplicada, agrupada, ampliada, diminuída. A imagem técnica aqui se constitui como matriz de um trabalho que se apresenta cada vez mais interessado em discutir as possibilidades de construção da imagem, ou, melhor ainda, na imagem como um processo construção. Da imagem em si, mas também dos discursos atrelados, atribuídos ou que se aderem quase inevitavelmente a essas imagens.
É também, por um lado, a imagem técnica tratada como escultura. Imagens-corpos pensadas em sua constituição material, interrogadas a partir das escolhas feitas na sua transição do mundo digital para o espaço expositivo. É como se fossem colocadas à prova ao testarem diferentes tipologias expositivas, interessadas na materialidade do papel, no corte real da imagem em diferentes partes ao mesmo tempo juntas e separadas, no seu abandono da parede. Até onde elas resistem? Pensadas também em sua presença física, essas obras ganharam uma escala muito próxima a dos nossos corpos, aproximando o que está dentro e fora da imagem. Ocupam o espaço, se fazendo presente, se infiltrando em meio aos visitantes. Imagens-corpos que também se comportam quase como espelhos, refletindo e capturando esses outros corpos, também presentes, e que ganham ecos nos registros da visitação da exposição. Registros que são vistos por públicos distantes, pelas telas de celulares, tablets, computadores (e agora deste livro), como camadas de mais corpos que seguem se sobrepondo. Igualmente testados, colocados a prova. Até onde resistimos?