TEXTOS
A criação de mundos
— Charlene Cabral
Como sobreviver ao mundo
— Fernanda Lopes
Questões do contemporâneo
— Alberto Saraiva
Prefácio - orun
— Raquel Valadares
Firmamentos: uma conversa
— Mari Fraga e Paula Scamparini
Paula Scamparini: em contínuo ponto cego e recomeço
— Clarissa Diniz
barco sobre lona
— Fernanda Lopes
Restauros, retornos e recomeços
— Maria de Fátima Lambert
oca-oxalá: made in Portugal
— Lourenço Egreja, Clarisse Meirelles
orun
— Heloísa Meireles Gesteira, Paula Scamparini
série palavras
— Fernanda Lopes
sobre carapuças e luz na obra de Paula Scamparini
— Sônia Salcedo del Castillo
as 23 noites
— Sônia Salcedo del Castillo
A obra de Paula Scamparini, aqui apresentada em conjunto, revela um desconforto da artista com a própria vida, em sua forma contemporânea e no Brasil, suas perspectivas, por definição, como brasileira vivendo nesta época. Trata-se de um olhar crítico que recai sobre a história, a política e a construção de ideias que pautam o comportamento do corpo social que a compreende. A artista nos indica caminhos que apontam para o corpo físico como núcleo e anteparo que suportaria tais impactos. Contudo, ela redireciona o foco de suas ações para a consciência/inconsciência que temos desses acontecimentos,
reunindo pequenas tragédias, sejam coletivas ou individuais, e conferindo qualidade matérica a elas. É nisto que reside sua pesquisa.
Sua obra exige disponibilidade do outro, no âmbito do sensível e do afeto, numa
aproximação que está em trânsito, e que vai da vida em comunidade no território brasileiro até sua representação em ambientes museológicos. Tomemos como exemplo a videoinstalação ORUN, resultado de viagens pelo Brasil, por meio de conversas com indivíduos e comunidades distintas sobre o significado que o céu tem para eles. O resultado artístico-instalativo funciona como campo espaço-temporal de aproximação de consciências na qual os personagens são o centro da obra. A indagação que tece sobre o céu gera uma complexidade universal também no contexto visual da videoinstalação.
Ora, como sabemos, o céu e a terra formam um sistema no qual um ir e vir se realiza. Tanto nos aspectos mitológicos quanto nos científicos, céu e terra estão interligados como um corpo em funcionamento e formam o espaço onde habitamos: coletivo e cósmico. E, mais definitivo que o impressionante céu científico no qual o Hubble se perde, o céu que construímos culturalmente é algo que se aprofunda em nós, é para dentro, nos forma. Os limites de um céu que aponta o sagrado são muito mais amplos que aqueles do céu
científico, que se desenvolve em camadas da atmosfera, que são níveis de elementos químicos de diferentes densidades e chegam a alcançar a casa dos milhares de quilômetros em direção ao espaço sideral. O céu que nos acolhe é muito mais aquele de ordem divina; e cada cultura traduziu seus mistérios de diferentes formas.
A ampla pergunta elaborada por Paula Scamparini deflagra inumeráveis visões culturais, que são salientadas na flexibilidade dinâmica das narrativas, e que, agrupadas, dizem muito sobre o pertencimento cultural do brasileiro, que compõe nosso universo estelar, no qual olhar para o céu é algo mágico, que nos envolve no exercício de ser, de nos localizarmos, não apenas física, mas espiritualmente, porque o céu é algo precioso, que nos insere na dimensão do sublime. O céu nos afeta desde sempre, e sua tradução na videoinstalação pelos povos mais diferentes do Brasil forma um legado mitológico, espiritual e científico, que pode ser tratado como acervo fundamental na construção de sentidos.
As relações entre a noção de patrimônio e museu podem nos ajudar a compreender melhor o que a obra nos apresenta. E uma forma de refletirmos sobre essas características é provocar sua aproximação com o universo da museologia contemporânea. A materialidade de sua obra, por exemplo, expele, na maioria das vezes, a natureza doobjetual das coisas, para então se deter naquilo que a museóloga Waldisia de Oliveira chamou de “fato museal”, ou seja, no deslocamento do objeto para a centralização do fato. Essa característica é comum a toda a obra da artista. Ela criou um método baseado na ideia de digressão e coleta, num trânsito que segue observando os fatos e estabelecendo relações metodológicas que tendem a se consolidar em textos, objetos, imagens, arquivos ou mesmo em tensões não objetuais. Consideremos, pois, outras obras como resultado dessa abordagem metodológica; Oca-Oxalá, por exemplo, verifica os reflexos da colonização portuguesa no Brasil ao longo do tempo, e Vermelhos materializa as telhas feitas nas coxas dos escravizados durante a colonização do país.
Paula inscreve seu trabalho dentro dessa estratégia de passagens e atravessamentos a partir dos quais ela irá materializar um resultado, mesmo que o resultado não seja propriamente um objeto em si. É dessa maneira que Oca-Oxalá e Vermelhos constituem sua mensagem. As escolhas de Paula Scamparini são, nesse sentido, pautadas por sua experiência patrimonial, ou seja, os frutos de uma realidade histórica, a partir da qual a artista reverbera respostas possíveis no intento de rastrear suas estruturas socioculturais. Em Oca-Oxalá, Orun, Vermelhos e em outros trabalhos, como Nós-tukano, cujos títulos evocam nossa explícita mestiçagem, ela busca sinalizar não aquilo que somos, mas aquilo que nos tornou o que somos.
Paula põe em pratica a noção de patrimônio a partir do universo artístico, por isso, sua obra resvala nas noções de objeto, acervo, museu e público. Desse modo, se depara com o fato de que não podemos capturar de modo integral o que nos é estruturante, e que construir é reconstruir-se. Isso aponta o porquê de abordar temas tão relevantes para a identidade do brasileiro e por essa razão, sua obra busca um percurso que tensiona o objeto artístico, distendendo-o aos campos museológicos como ambientes possíveis para discutir tais problemáticas.