TEXTOS


A criação de mundos
— Charlene Cabral

Como sobreviver ao mundo
— Fernanda Lopes

Questões do contemporâneo
— Alberto Saraiva

Prefácio - orun
— Raquel Valadares

Firmamentos: uma conversa
— Mari Fraga e Paula Scamparini

Paula Scamparini: em contínuo ponto cego e recomeço
— Clarissa Diniz

barco sobre lona 
— Fernanda Lopes

Restauros, retornos e recomeços
— Maria de Fátima Lambert

oca-oxalá: made in Portugal
— Lourenço Egreja, Clarisse Meirelles

orun
— Heloísa Meireles Gesteira, Paula Scamparini

série palavras
— Fernanda Lopes

sobre carapuças e luz na obra de Paula Scamparini
— Sônia Salcedo del Castillo

as 23 noites
— Sônia Salcedo del Castillo



A criação de mundos

Charlene Cabral
2023


︎ projeto




Uma mulher que é um bando; telhas que são corpos. A exposição Cargadoras, individual da artista brasileira Paula Scamparini no Instituto Guimarães Rosa México, é composta por trabalhos que desafiam nossa capacidade de imaginar, inaugurando lógicas interpretativas em movimento constante entre o tempo histórico e o tempo do sonho, passando pelos matizes e infiltrações entre um e outro. São apresentados dois conjuntos de obras: a instalação Vermelhos (2016-2020), obra colaborativa realizada durante uma residência em Portugal, e fotografias da série Carregadoras (2019-2023), produção mais recente da artista.

Em Vermelhos, certas informações sobre a realização das peças merecem atenção. O que poderia ser interpretado como um arranjo abstrato de cerâmicas disposto no espaço expositivo, sob a nomenclatura da cor mais veloz do espectro, recebe contornos referenciais quando lembramos que o vermelho costuma estar ligado, entre tantas coisas, à pele dos indígenas americanos; e que as coxas de cerâmica, moldadas por pessoas de cores e procedências diversas a convite da artista, ganharam essa tonalidade ao serem queimadas, dando título ao trabalho e funcionando como homenagem. Na obra, elas representam o que de fato são, coxas: incorporando como principal qualidade a sua fatura “nas coxas” – mal feitas, segundo uma expressão brasileira que tem origem em práticas escravagistas –, se desprendendo da função telha, em um procedimento simbólico que devolve o objeto ao seu molde, legitimando o corpo (em liberdade) de quem o executou e as eventuais imperfeições do produto final. Os suportes metálicos nos quais se apoiam tratam de compor com esses corpos, em formatos inéditos e instáveis, talvez sugerindo narrativas abertas e em construção, mas também demandando cuidado.

Diferentes estruturas também se perfilam na série de fotos Carregadoras, eloquentes e misteriosas a uma só vez. Nelas, são os corpos femininos, multiplicados, os responsáveis por alçar os objetos. Podemos nos perguntar se essas mulheres são sujeitos sobrepostos de ações desdobradas em diferentes tempos, gerações ou dimensões. Nessas imagens, vemos uma mística de corpos que carregam em si outros corpos, em tudo lhes ofertando sustento, e reconhecemos nelas os ciclos de manutenção à vida – potentes, ásperos, maravilhosos. Em Carregadoras P.S.1, corpos singulares que carregam alimento, ainda verde, como a prometer futuro; em Carregadoras P.S.2 e Retirantes, corpos prenhes de mundo novo, carregando o que não se revela (o que lhes pertence) e o susto de um mundo velho em crise; em Matriz, finalmente, comunhão nascida, dádiva e perfeição, o fora que também é dentro e que extravasa. Mas palavras dificilmente dão conta dessas imagens, ricas em autossuficiência e que estabelecem uma relação de incompletude em relação à linguagem.

O que se pode dizer é que nas fotografias de Carregadoras tudo é tão pessoal quanto universal e político, pois não podemos deixar de recalcar que as protagonistas dessas fábulas são existências-mulheres em seu grande esplendor. Esses bandos – como chamamos também a um coletivo de pássaros – aparecem como a representação de uma grande força vital, tão resistentes quanto as incontáveis violações que sofrem todos os dias por parte de um mundo que engendraram, mas, estranhamente, pouco tiveram (têm) a chance de dirigir. 

“Brasileira, artista, mãe” são autodefinições rápidas utilizadas por Scamparini para comunicar um lugar de fala. Se as duas primeiras costumam ser anunciadas já de cara, a exemplo da frase que abre este texto, a terceira acaba sendo uma informação facultativa, geralmente sem lugar certo para se inscrever, mesmo que ela suponha tantas ou mais atribuições que as demais.  A maternidade, esse assunto quase sempre contornável (pelos outros), posto de lado sempre que possível nos espaços da arte, aparece explicitamente em Carregadoras e devemos a Paula las gracias por isso. “O que artística e teoricamente criamos enquanto literalmente criamos?”, pergunta a pesquisadora, docente e mãe Michelle Sommer, para em seguida propor que seja levado em conta o lugar a partir do qual se cria: o império do tempo fragmentado. Se no trabalho de Paula Scamparini temos o privilégio de ver gestação e criação desdobradas em feições poéticas, insubmissas e desencadeadoras de potência imaginativa, é porque – nesse caso literalmente – um punhado de fragmentos de tempo materno foram dirigidos para esse fim. E é provável que muitas pessoas, não-mães, não cheguem a compreender de fato essa sentença.

As imagens quase mágicas de Paula Scamparini e as experiências densas que elas contêm se firmam como estandartes dessa força vital criadora de seres e também de mundos, a qual se desenrola em um presente contínuo tal qual uma fita de Möbius: sendo fantasia e realidade, uma conduzindo à outra, ininterruptamente. Caminhar por essa fita em que dois lados são um, na companhia das Carregadoras, e também de Vermelhos, é tanto desejar quanto afirmar com veemência os lugares que ocupamos e merecemos ocupar em legítimos novos mundos, criados por nós, suas narradoras.