TEXTOS


A criação de mundos
— Charlene Cabral

Como sobreviver ao mundo
— Fernanda Lopes

Questões do contemporâneo
— Alberto Saraiva

Prefácio - orun
— Raquel Valadares

Firmamentos: uma conversa
— Mari Fraga e Paula Scamparini

Paula Scamparini: em contínuo ponto cego e recomeço
— Clarissa Diniz

barco sobre lona 
— Fernanda Lopes

Restauros, retornos e recomeços
— Maria de Fátima Lambert

oca-oxalá: made in Portugal
— Lourenço Egreja, Clarisse Meirelles

orun
— Heloísa Meireles Gesteira, Paula Scamparini

série palavras
— Fernanda Lopes

sobre carapuças e luz na obra de Paula Scamparini
— Sônia Salcedo del Castillo

as 23 noites
— Sônia Salcedo del Castillo



Prefácio

Raquel Valadares


︎ projeto




Tal como o trabalho de Paula Scamparini, também este prefácio tem a pretensão de fomentar a imaginação, de criar paisagens a partir da palavra, possibilitando um acesso à artista e trazendo uma perspectiva sobre as obras reunidas neste catálogo. Preste atenção ao fio da meada: há histórias, nem sempre visíveis, cuidadosamente enredadas em todo o seu fazer. Histórias que emergem de seu processo criativo e percurso de vida, e que refletem o seu ser e estar no mundo em diálogo permanente e vivo com as pessoas e com a natureza, e que, por derradeiro, constituem o coração de sua arte. Afinal de contas, seriam as histórias também formas de arte?

Os trabalhos aqui selecionados remetem à prática da artista com a escrita, a fotografia, o audiovisual, as intervenções no espaço e a direção de arte (ou como ela mesma define tais práticas, a construção de mundos). Grande parte desses trabalhos têm origem em residências artísticas, nas quais experimentou a sensação de não-pertencimento. Seja em Portugal, França, Áustria, ou Alemanha, seja em Copacabana, São Paulo, Xingu ou Cariri, Paula passou a apreciar e nutrir uma perspectiva de alteridade diante do mundo e do outro, adotando como metodologia de trabalho certo olhar estrangeiro.

Eduardo Viveiros de Castro costuma dizer que “a alteridade é objeto de um desejo igualmente radical por parte do Eu” (2011) e que os bravos, os que gostam de viver perigosamente, não se conformam à paz da autoidentidade. Paula definitivamente é uma brava, atraída pelo novo e pelo desconhecido. Tanto como pessoa e como artista, quanto como pesquisadora, gosta de testar a própria percepção sobre o saber, a cultura e a realidade. Por isso, se lança em jornadas repletas de deslizamentos, que lhe exigem gerenciar a força de sua curiosidade e a medida de sua coragem. Para tal, vale-se de um insuspeito
fiel da balança: o medo.

Como sabemos, é necessário um mínimo de imaginação para se ter medo. Por isso, o medo é para a imaginativa Paula um dos principais disparadores da possibilidade da ficção, que lhe é tão cara. Elfos, por exemplo, surge de uma longa e solitária estadia em uma casa isolada na mata, onde havia um lago cujo fundo não se podia ver. Diante do alarme dos vizinhos, “se gritar, ninguém vai ouvir”, sentiu, na forma de tremor corporal, o inquietante medo. E quando isso acontece, aí mesmo que ela vai. E foi. Encarou o breu, nadou no lago
e imaginou seres mágicos.

Outra experiência, menos aterrorizante, provocou-lhe um forte desconforto. A monumentalidade dos espaços de Munique, apelidada por Adolf Hitler de “a capital do movimento”, afrontou o imenso acúmulo de fitas de papel nos quais costuma imprimir suas histórias inventadas. Mas a artista agigantou-se e persistiu com o trabalho de intervenções na paisagem, criando Verboten. Tampouco a gigante massa documental constitutiva dos trabalhos Oca-Oxalá e Restauros a intimidou, e conseguiu extrair e criar, a partir da articulação entre documentos, narrativas que combatem a perspectiva eurocêntrica da
historiografia, da factografia e da produção de verdades.

Também a magnitude das viagens, que fez quase sempre sozinha, a fim de reunir
62 depoimentos de pessoas as mais diversas para a constelação de Orun, não a deteve. O imponderável que a assusta não a impediu de enfrentar desafios como, por exemplo, transportar a pesadíssima escultura de colchão em cimento e fazer passar pela porta da galeria a carnavalesca cabeça de rinoceronte vermelha, que juntas ornam Barco sobre Lona. Antes, a ousadia mobilizou a artista a se aventurar, na obra 3amargem, pela radiotransmissão, expandindo a privacidade dos vizinhos anônimos e devassando as janelas visadas pela Galeria.

Em conclusão, o irrefreável ímpeto de construir mundos imaginados faz a brava Paula Scamparini confrontar não somente seus medos, mas também o desejo de desbravar o mundo e de encontrar o outro. E, talvez porque o mundo seja grande demais, e as pessoas todas singularmente complexas, Paula cultive um respeito desmedido, fruto da mais profunda consciência de que o real é inapreensível, a totalidade incompreensível e o acúmulo impossível de manejar.